Saudações aos deuses!

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"É do ouro de Oxum que é feito o manto que me cobre"

POR UMA EDUCAÇÃO ANTI-RACISTA

HISTÓRIA E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA:



A RESISTÊNCIA CONTINUA!



sábado, 24 de julho de 2010

O POVO NEGRO NA SALA DE AULA: Propostas e Desafios

Aline Najara da Silva Gonçalves

Após sete anos que a Lei 10639/03 foi promulgada, se apresenta como um grande desafio aos educadores, seja pelo desconhecimento de materiais pedagógicos que fundamentem a exposição, seja pela incompreensão da necessidade de sua aplicação. O que pretendo nesta breve análise não é trazer soluções para as inquietações a respeito do tema, até porque esta é uma temática que suscita polêmicas e certamente não vai ser esgotada nestas linhas. Minha intenção é socializar experiências que deram certo, expor alguns problemas e incitar questionamentos.
O primeiro desafio com o qual nos deparamos diz respeito à história da África e dos africanos. Por muito tempo, o que conhecemos sobre a história do continente africano esteve restrito ao período que se inicia com a instituição do escravismo no Brasil. Assim, o continente africano é conhecido como origem de escravos e os termos África e africano ficaram estritamente relacionados à escravidão, numa representação que foi instituída a partir dos valores e concepções de mundo ocidentais. Dessa forma, em escritos produzidos sobre a África, encontramos equívocos, preconceitos e uma carga enorme de estereótipos, chegando ao ponto de este ser considerado um continente sem história.
O filósofo alemão Hegel acreditava na incapacidade de o africano para construir a sua própria história. Nesta concepção, a África subsaariana é considerada uma área desprovida de história e esta se concentra no mundo europeu e nos espaços geográficos que se comunicam com o Mar Mediterrâneo. No continente africano apenas a África Setentrional e o Egito se enquadravam neste grupo – a chamada África Branca. O que certamente este filósofo desconhecia e muitos ainda desconhecem é a riqueza da história do continente africano, traduzida na imponência dos seus impérios pré-coloniais — como o reino de Gana, que atingiu o seu apogeu no século VIII e era conhecido como Terra do ouro —, na variedade lingüística — só na África bantu são faladas mais de 300 línguas — e na variedade cultural do seu povo.
Desse modo, a concepção de África foi marcada por estereótipos que remontam ao tráfico negreiro. A partir do momento em que foram utilizadas expressões como branco e negro para re-significar colonizadores e colonizados; livres e escravos, respectivamente, os africanos e seus descendentes ficaram marcados com a herança ilusória e imaginária da inferioridade que permeia todo pensamento racista ainda existente na sociedade.
Não é à toa que até hoje os vocábulos negro / preto carregam conotações negativas que foram internalizadas, sendo inseridas na linguagem e no cotidiano e assimiladas de forma que, sutilmente, naturalizam o discurso de inferioridade do negro, como “preto de alma branca”; “denegrir”; “é preto, mas é bonito”; “a coisa tá preta”; etc. A verdade é que este discurso de inferiorização do negro e da sua cultura foi intensificado no século XIX com as teorias raciais que atestavam a superioridade ariana em detrimento dos demais grupos étnicos.
O segundo desafio é tratar da luta dos negros no Brasil e da sua cultura. O desafio aqui está em abordar o tema da resistência negra e da cultura afro-brasileira como algo que vai além da ilustração do negro como parte do folclore brasileiro. É preciso romper com a tendência que vê a cultura negra como algo exótico. O que se quer com esta lei é entendê-la em seu caráter transformador. Primeiro, é preciso compreender que onde houve escravidão; houve resistência e mais: nem só de fugas e formação de quilombos se configurou a luta dos escravos contra a escravidão. Outras formas de resistência precisam ser apresentadas aos nossos alunos, como a religião, a formação de juntas de alforria entre os escravos urbanos, as revoltas, a capoeira e até mesmo a criminalidade, que naquele momento, é considerado o primeiro ato humano do escravo, que apesar de ser considerado “coisa”, era julgado como “gente” ao cometer um ato criminoso. Assim, matar um senhor era uma forma de negar a coisificação a que estava submetido. (Cf. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Cia das Letras, 1990.)
Os alunos, em especial o aluno negro, precisa reconhecer que não era natural ser escravo, assim como é preciso que a escola reconheça a naturalidade em trabalhar a história do negro, assim como se trabalha a história do europeu. A própria concepção de história e de ensino de história que adotamos é uma concepção européia, que privilegia um conhecimento em detrimento do outro.
Estudamos em todo período escolar a história antiga, medieval, moderna e contemporânea do europeu; do colonizador. E neste mesmo período desconhecemos a historia dos outros povos que influenciaram a nossa cultura e a formação da nossa sociedade. É assim com os negros e com os índios. A própria denominação de “negros” e “índios” ilustra esta questão, uma vez que se trata de denominações que homogeneízam um povo que é heterogêneo. Veja: falamos em italianos, ingleses, franceses... e africanos (como se todos fossem um só). O que eu quero dizer, é que é preciso adequar a história do negro ao currículo de forma natural, bem como demonstrar que a atuação do negro na história da sociedade brasileira não se resume ao período escravista. É preciso mostrar que o negro é sujeito da sua história. Que não foi a Lei Áurea que libertou os escravos — a Lei apenas legitimou uma situação que já estava estabelecida. Quando a princesa assina a Lei apenas 5% da população ainda era escrava, o que significa que 95% dos escravizados já tinham conquistado a liberdade muito antes da promulgação da Lei. Os alunos precisam conhecer os movimentos sociais liderados por africanos e seus descendentes. Precisam entender a diferença entre a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana e se questionarem: por que Tiradentes é herói nacional e eu nunca ouvi falar em Lucas Dantas? Quem foi Pacífico Licutã? Existiram outros heróis negros?
Este é mais um ponto... é certo que a concepção de história pautada na exaltação de heróis e seus feitos há muito é combatida, entretanto, penso que neste sentido, é importante apresentar aos alunos personagens negros da história, afim de demonstrar que o negro também fez a história acontecer e não ficou apenas sendo mandado, na posição de subserviência que muitos ainda querem nos colocar.
Nicholas Davies, em artigo intitulado “As camadas populares nos livros didáticos de História do Brasil”, publicado na obra O Ensino de História e a Criação do Fato (DAVIES. In: PINSK, 2004), destaca que o enfoque dado à participação popular na história, principalmente tratando-se de movimentos de resistência, oportuniza às camadas populares o sentimento de valorização enquanto sujeitos históricos e, conseqüentemente, a sensação de valor social no presente, fortalecendo-os para lutas futuras. Além disso, Davies aponta que a importância desta abordagem reside na preocupação e comprometimento em relatar os acontecimentos em sua inteireza, “não apenas em sua parcialidade (o pólo dominante), ainda que, essa parcialidade tenha imprimido o sentido maior a essa totalidade.” (PINSK, 2004)
Conhecer estes personagens e conviver com eles, certamente elucidará no aluno, especificamente o aluno afro-descendente, os caminhos a uma auto-visualização na história, externa aos estereótipos difundidos pelos grupos dominantes, que legitimaram a inferiorização dos negros e oscilavam entre as imagens de passividade, obediência ou até mesmo irracionalidade. Trata-se, então, de estabelecer um compromisso de transformação social e vislumbrar uma atuação desses estudantes (na escola e na sociedade em geral), pautada no domínio e percepção do seu potencial de criticidade, com o discernimento necessário à negação de uma postura idealista ou auto-depreciativa em seu campo de representações, viabilizando, dessa forma, a construção de sujeitos autônomos, conscientes do processo de busca pelo conhecimento, tendo em vista seu caráter contínuo e permanente.
A problemática do assumir-se permeia, também, questões relativas à propagação de uma educação voltada ao tratamento da diversidade e pluralidade cultural no ambiente escolar, ou seja, ao respeito às diferenças como mecanismo de combate à discriminação ou qualquer forma de preconceito em sala-de-aula.
Adotando aqui os conceitos formulados por Maria Aparecida da Silva em Formação de educadores/as para o combate ao racismo: mais uma tarefa essencial , entende-se por preconceito “uma atitude negativa com relação a um grupo ou pessoa, baseando-se num processo de comparação social em que o grupo da pessoa preconceituosa é considerado um ponto positivo de referência” e discriminação, sua ”manifestação comportamental, ou seja, a materialização da crença racista em atitudes que efetivamente limitam ou impedem o desenvolvimento humano pleno das pessoas pertencentes ao grupo discriminado”, priorizando-se, desse modo, uma prática pedagógica que preze pela superação do racismo em busca da criação, na escola, bem como fora dela, de um ambiente que proporcione a inclusão dos alunos afro-descendentes, contribuindo para a elevação da auto-estima e auto-conhecimento como sujeito/agente de uma história que vive e produz, concomitantemente.
Discussões e debates como este podem parecer desnecessários numa sociedade que alarma aos quatro cantos que não é racista e que vive uma verdadeira democracia racial, entretanto, uma série de sinais mostram como a mentalidade racista ainda persiste e como a escola, juntamente com a família têm um papel fundamental no processo de eliminação desta herança cultural racista. Apesar de ser negado, o preconceito persiste. Florestan Fernandes afirmava que o brasileiro tem preconceito de não ter preconceito, ou seja, não o admite e este se revela sutilmente, se mostrando não oficial – por ser negado e não denunciado –, particular, porque em geral as manifestações discriminatórias acontecem, em ambientes restritos, como elevadores, restaurantes, no trabalho, etc; silencioso, porque quem é racista não anda com uma bandeira indicando seu racismo e o nega e, por fim, externo, por sempre ser creditado ao “outro”. É aquela questão: não sou racista, mas conheço fulano que é...
É importante compreender a resistência negra como um processo contínuo e, se o negro escravizado resistia contra a violência da coisificação, hoje o negro resiste contra o preconceito. Além disso, sua atuação histórica não se limita ao processo escravista. Ele atua ativamente em diversos momentos da história do país.
A escola tem suma importância no processo de construção da auto-estima do estudante negro ou desconstrução desta, bem como a família. Muitos colegas têm se perguntado: como trabalhar com esta temática? Antes de tudo, é preciso refletir: qual o meu papel como educador? Eu acredito nesta proposta? Em primeiro lugar, é preciso permitir que o aluno negro se veja na escola. A decoração da escola, por exemplo. É comum vermos painéis nas escolas painéis com ilustrações de crianças brincando, conversando, dando boas-vindas... há representações de crianças negras nestes painéis? E nas tarefinhas dos alunos da educação infantil? Quando um aluno negro se representa em desenho a si e à sua família, como ele se pinta? Como ele se vê? Nas salinhas da educação infantil, em meio aos brinquedos das crianças, têm bonecas negras? Um segundo ponto é criar estratégias e oportunidades. Não é preciso avisar ao aluno que tratará do tema, como se precisasse pedir autorização. Vamos naturalizar a proposta com a utilização de textos, como contos, crônicas, poesias, exibição de filmes, leitura de obras literárias, pesquisas... Às vezes um material simples pode suscitar discussões fecundas. Só assim poderemos por em prática o ideal de uma educação anti-escravista e libertadora.
Mãos à obra!
Axé!

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